Texto publicado pela RUAF - Agricultura Urbana e Sistemas Alimentares
traduzido voluntariamente por Joaquim Moura

Sistemas alimentares urbano-regionais para lidar com a COVID-19 e outras pandemias emergentes
30 de abril de 2020

Autores: Alison Blay-Palmer, Jess Halliday, Guido Santini, Makiko Taguchi e René van Veenhuizen

Este blog foi desenvolvido por parceiros da RUAF juntamente com a FAO e também está publicado no site sobre sistemas alimentares urbano-regionais da FAO, onde também pode ser encontrada uma série de blogs sobre diversas experiências relacionadas em vários
países e cidades.

Introdução

A pandemia do COVID-19 está afetando a vida diária em todo o mundo de maneiras sem precedentes e apresentando novos desafios aos sistemas sociais e econômicos, incluindo ao sistema alimentar globalizado e industrializado. Várias respostas, tanto de curto como de longo prazo, têm sido propostas e debatidas pela comunidade de planejamento e política alimentar.


A abordagem de 'sistemas alimentares urbano-regionais" - SAUR (City-Region Food System - CRFS) - desenvolvida pela FAO e RUAF (em parceria com o Centro Universitário Wilfrid Laurier para Sistemas Alimentares Sustentáveis ​​e o programa Água, Terra e Ecossistemas do CGIAR, liderado pelo Instituto dInternacional de Gestão Hídrica) - fornece uma estrutura para: compreender a vulnerabilidade dos sistemas alimentares das cidades; melhorar a comunicação e a cooperação; e coordenar ações imediatas para salvaguardar a segurança alimentar e nutricional.


No longo prazo, a abordagem SAUR fornece uma plataforma participativa para definir políticas, intervenções e mecanismos de governança territorial para a transformação do sistema alimentar, reforçando a cooperação e a colaboração entre diferentes governos locais e outros atores - elementos-chave para construir resiliência do sistema alimentar local a choques, incluindo pandemias, epidemias e eventos climáticos.


Falha dos sistemas alimentares atuais


Desde o início da crise do COVID-19, estão surgindo relatos de desafios para as cadeias de abastecimento de alimentos, com sérias ameaças para a segurança alimentar e nutricional, incluindo:


  • mão-de-obra agrícola limitada (frequentemente fornecida por migrantes sazonais) devido a restrições na mobilidade humana e distanciamento físico;
  • acesso limitado a insumos agrícolas devido a restrições aos seus produtores, transportadores e importadores;
  • congestionamento e interrupção na logística e entrega de alimentos, incluindo resultantes da maior demanda por provisões de alimentos de emergência, como ocorre nos bancos de alimentos;
  • fechamento de mercados (formal e informal, atacadistas e produtores) devido ao distanciamento físico e à falta de equipamentos preventivos.
Algumas cidades são particularmente suscetíveis a problemas de abastecimento, devido à diversificação limitada das cadeias de valor e dos canais de abastecimento, à dependência alta ou exclusiva de importações de alimentos, bem como a longas e complexas cadeias de abastecimento perenemente vulneráveis ​​a choques repentinos, seja devido a fatores sociais, políticos, eventos econômicos ou naturais.

Esses problemas também são exacerbados em cidades que têm ligações e cooperação limitadas com seus arredores rurais, onde podem ocorrer a produção e o processamento de produtos alimentares essenciais consumidos na cidade.


A alta densidade populacional em áreas urbanas também apresenta um risco elevado de contágio durante as atividades normais de abastecimento ou compra de alimentos.

Sem dúvida, os pobres urbanos - e especialmente aqueles que vivem em assentamentos informais - enfrentam um risco elevado de infecção e de insegurança alimentar. Seu contigente deve inchar à medida que a crise econômica, causada pelo fechamento global, condena milhões ao desemprego.


Necessidade de uma resposta coordenada


É necessária uma resposta rápida para fortalecer os sistemas alimentares das cidades e suas regiões nos próximos meses, seguida por ações que garantam maior resiliência ao impacto de pandemias e outros choques a longo prazo.

A maioria das autoridades locais, incluindo governos municipais, não está equipada
suficientemente para o desafio.

Apesar do crescente interesse e diversas ações das cidades para melhorar seus sistemas alimentares e desenvolver políticas alimentares (dentro dos limites dos seus poderes e competências), a alimentação ainda não faz parte do planejamento urbano e territorial convencional.


As cidades continuam esmagadoramente sujeitas às políticas alimentares de nível nacional; e uma resposta comum dos governos nacionais ao COVID-19 tem sido apelar aos supermercados para garantir que as prateleiras permaneçam abastecidas com produtos essenciais, aparentemente alheios às questões locais das cadeias regionais de abastecimento e aos impactos sobre os atores, especialmente aqueles cujos meios de subsistência estão ligados ao setor informal de alimentos.


Enquanto isso, no nível das comunidades, os cidadãos, as ONGs e as redes informais entraram em ação e estão explorando formas alternativas de manter a comida na mesa. Tem havido um aumento sem precedentes no interesse por sistemas de venda de cestas de hortaliças e frutas, por esquemas de agricultura apoiada pelos consumidores, e pelas cadeias curtas de abastecimento de alimentos e pelo cultivo urbano, comunitário e doméstico, de hortaliças, e pela solidariedade alimentar entre vizinhos.


Existe uma notável falta de coordenação entre os atores e instituições envolvidas no abastecimento de alimentos, bem como de apoio financeiro suficiente para promover tais iniciativas, por mais útil que possam ser. Além disso, as respostas são "oportunistas" - limitando-se a encontrar mercados para os produtos disponíveis, em vez de construir infraestrutura, capacidade e conexões para o abastecimento alimentar periurbano e regional a longo prazo. Não há garantia de que tais esquemas eventuais durarão ou serão capazes de garantir a segurança alimentar e nutricional urbana por um longo período.

As cidades e suas regiões como parte de uma resposta em vários níveis


A interrupção dos sistemas alimentares pela COVID-19 destaca a necessidade de reconectar a produção e o consumo locais. A proposta não é a autossuficiência ou o protecionismo, mas sim garantir que as áreas urbanas não dependam apenas de fontes distantes, sem recurso em caso de insucesso.

As cidades e suas regiões, ao planejarem ativamente sistemas alimentares resilientes, estarão ajudando a garantir que:
(a) a cadeia de abastecimento de alimentos seja diversificada e resiliente a choques futuros;
(b) o acesso aos alimentos permaneça nos níveis anteriores ao desastre, ou retorne rapidamente a esses níveis, e
(c) o impacto sobre os atores vulneráveis ​​dos sistemas alimentares seja mitigado, incluindo os pequenos produtores, comerciantes informais e grupos de baixa renda e marginalizados.


Isso exigirá coordenação e apoio entre governos e organizações em todos os níveis, e não pode ser alcançado por decreto do governo nacional ou por intenções isoladas do governo local. Em vez disso, funcionários do governo, ONGs e as várias partes interessadas no sistema alimentar devem se conectar e colaborar nas áreas urbanas, periurbanas e próximas às rurais, criando planejamento, coordenação e governança alimentar entre as jurisdições e territoriais.

Para facilitar isso, a abordagem e o kit de ferramentas do SAUR foram desenvolvidos com base em um processo participativo com as diversas partes interessadas. Ele fornece um método e ferramentas para:
(a) avaliar as ligações e fluxos de recursos entre as áreas rurais e urbanas, os principais atores, as políticas e legislações, a sustentabilidade, e os riscos e vulnerabilidades atuais e futuras; e
(b) planejar ações de política para construir resiliência e promover a sustentabilidade.


Em particular, a abordagem SAUR pode ajudar a organizar os sistemas alimentares de uma maneira mais eficaz e sustentável para atender às demandas dos produtores e consumidores, promovendo a produção local de alimentos (especialmente os agricultores familiares e pequenos proprietários) e as cadeias de abastecimento mais curtas, fortalecendo os vínculos urbano-rurais e mantendo (ou criando) maior diversidade na cadeia de abastecimento alimentar e nos canais de distribuição (da fazenda à mesa).

No longo prazo, a abordagem CRFS ajuda a definir políticas, intervenções e mecanismos de governança territorial para a transformação do sistema alimentar, reforçando a cooperação e colaboração entre diferentes governos locais e outros atores - elementos-chave para construir resiliência do sistema alimentar local diante de choques como pandemias, epidemias e eventos climáticos.

Todo esse trabalho em andamento para fortalecer os recursos de resiliência aos choques e tensões climáticas incluídos no kit de ferramentas SAUR, também pode ser aplicado,
em estreita colaboração com os governos locais, para compreender o impacto do COVID-19 e servir como base para iniciativaws de planejamento e monitoramento.

A COVID-19 e os sistemas alimentares urbano-regionais: impactos e respostas - uma seleção de experiências em algumas cidades

Representantes de cidades que aplicaram as ferramentas SAUR, ou que têm trabalhado com parceiros do RUAF em outros programas, começaram a relatar como a pandemia COVID-19 está afetando o sistema alimentar da cidade - e as maneiras pelas quais o conhecimento, recursos e capacidade podem ajudar em sua resposta imediata a essa ameaça sem precedentes à segurança alimentar, incluindo como a abordagem ou perspectiva do SAUR poderia ajudar. O que se segue é um primeiro conjunto de respostas de parceiros do RUAF em algumas cidades ao redor do mundo. Mais exemplos virão nas próximas semanas.


A abordagem CRFS pode contribuir para a concepção e implementação de uma estratégia "pós-COVID-19" em Antananarivo, Madagascar, que pode servir como uma ferramenta eficaz para reforçar a resiliência do sistema alimentar em geral. Elementos particularmente úteis são o mapeamento do fluxo alimentar, a determinação das quantidades dos produtos e o rastreamento da função de cada ator envolvido na cadeia alimentar. Os atores do transporte e da distribuição podem fornecer soluções para garantir a distribuição de alimentos em períodos de crise.


O Departamento do Sistema Alimentar de Nairóbi, Quênia, aplicou os Indicadores SAUR (com apoio do Instituto Mazingira, RUAF, FAO e do programa CGIAR WLE). Foram coletados dados sobre comerciantes de alimentos e monitorados o treinamento e a divulgação agrícola. Embora os indicadores mostrassem claramente que é o setor informal que faz o sistema alimentar funcionar, o Departamento do Sistema Alimentar não foi capaz de dar respostas eficazes diante da crise da pandemia. A resposta geral do governo foi fechar tudo, inclusive os mercados de alimentos.


Esse 'toque de recolher' impediu as “mama boga” (vendedoras de verduras) de obter os suprimentos de que precisam de manhã cedo e de vendê-los nos bairros de baixa renda à noite. Os indicadores do SAUR mostraram que as mulheres são as principais distribuidoras do setor informal e os criadores de gado urbano disseram ao Instituto Mazingira que as famílias que abastecem de leite os bairros pobres não estão recebendo os insumos necessários ou qualquer ajuda dos serviços de extensão da cidade. Suas atividades não foram priorizadas como “serviços essenciais” e, portanto, não estão em funcionamento.


O Departamento do Sistema Alimentar não está ativo durante a pandemia, portanto são as organizações da sociedade civil, redes de agricultores e comerciantes que estão tentando preencher as lacunas na operação do sistema alimentar. É extremamente importante continuar documentando as informações do setor informal e tentar restabelecer com urgência os vínculos com as autoridades municipais.

Em Kitwe, Zâmbia, apesar da propagação limitada do coronavírus, o medo, o transporte restrito e / ou o distanciamento físico afetaram o fornecimento e a distribuição de alimentos frescos, principalmente frutas, hortaliças, carne e laticínios. Além disso, muitos pequenos agricultores na cidade e sua periferia envolvidos na produção de alimentos frescos também são particularmente afetados, pois sua maioria constitui famílias apresentando os maiores incidentes de pobreza. Esses desafios podem ser ainda mais exacerbados à medida que a Zâmbia se aproxima da época de colheita.
O risco é a redução significativa dos preços dos produtos agrícolas e o aumento das perdas no nível da fazenda, especialmente para os produtos perecíveis.

Os desafios enfrentados pelo país em relação ao abastecimento de alimentos estão sendo enfrentados principalmente pelo governo central. No entanto, apesar do poder limitado do governo local, a plataforma envolvendo as várias partes interessadas que foi criada pela cidade para coordenar os atores no SAUR está se tornando fundamental para promover a coordenação entre os atores da cadeia de abastecimento na definição de estratégias e ações coordenadas para mitigar os impactos da COVID 19 e lidar com os cenários pós-pandemia.


Em Colombo, Sri Lanka, há um forte alinhamento entre as medidas introduzidas por uma força-tarefa do governo para garantir a disponibilidade suficiente de alimentos básicos (e frutas e hortaliças, uma vez que não houve falta delas) e a abordagem SAUR. Essa força-tarefa está adotando uma abordagem sistêmica para garantir que as comunidades tenham acesso a alimentos usando elos alternativos da cadeia de abastecimento, em coordenação com várias partes interessadas através das fronteiras administrativas. Ela aborda questões como o acesso dos agricultores a insumos, o acesso da população aos alimentos, a gestão de resíduos e o estabelecimento de centros para a distribuição de produtos agrícolas.

A avaliação da vulnerabilidade do sistema alimentar de Toronto, concluída em 2018, ajudou a desenvolver uma ação para envolver os atores do sistema alimentar de forma mais ampla e em nível comunitário.

No outono de 2019, Toronto adotou os alimentos como uma lente para analisar a situação das várias partes. Apesar do aumento da conscientização sobre o alimentação de Toronto, o maior impacto do COVID-19 foi no crescimento da demanda por provisões emergenciais de alimentos para pessoas de baixa renda, sem-teto e desempregados.

Mais famílias estão enfrentando a insegurança alimentar devido à perda de renda e de emprego durante a pandemia. Isso significa mais demanda nos bancos de alimentos da cidade, nas agências comunitárias de alimentos, Cruz Vermelha, Exército de Salvação etc. Esforços locais estão surgindo para atender à necessidade crescente de alimentos e tem levado muitas organizações a direcionar seus serviços para o fornecimento emergencial de alimentos. Os serviços prestados por meio dessas agências incluem cestas de alimentos, a preparação e a distribuição de refeições em cozinhas comerciais e comunitárias.


O Conselho de Política Alimentar de Toronto concentrou esforços na reabertura de mercados de produtores e hortas comunitárias que haviam sido fechados por não serem serviços essenciais designados pelo governo local. Os esforços dos produtores de alimentos urbanos em Toronto e nas regiões vizinhas resultaram na reabertura de hortas comunitárias em Ontário. Em 26 de abril, o governo de Toronto ajustou seus decretos emergenciais para permitir a abertura de hortas comunitárias e em parcelas.

Uma outra preocupação importante centra-se agora na saúde dos trabalhadores migrantes.
Em 2019, 69.000 trabalhadores migrantes temporários vieram para o Canadá para trabalhar no setor agrícola. Os empregadores puderam decidir quais as diretrizes de saúde e segurança de março de 2020 adotariam para os trabalhadores migrantes, o que aumentou as preocupações com o bem-estar desses trabalhadores. Uma abordagem mais robusta do SAUR poderia reforçar a importância de uma estratégia mais integrada para aumentar a capacidade adaptativa aos choques do sistema alimentar regional de Toronto.


O acesso aos alimentos também foi afetado pela COVID-19 em Quito, Equador, onde o bloqueio dos locais públicos impediram que as "bioferias" e os mercados locais pudessem continuar funcionando. Por outro lado, formas de distribuição mais baseadas em produtores de pequena escala e agricultores familiares estão agora suprindo as necessidades de alimentos das parcelas mais pobres da população - o que é muito importante devido ao nível de vulnerabilidade das pessoas.

Como parte do projeto SAUR e do trabalho relacionado com seus indicadores, Quito realizou um mapeamento desses mercados, bem como das comunidades vulneráveis. Essa iniciativa se provou inestimável para identificar os grupos vulneráveis ​​para distribuição emergencial de alimentos, pois o Comitê de Operações Especiais de Quito para enfrentar a pandemia não tomou providências para proteger os idosos ou deficientes que não podem sair.

O desenvolvimento e a ação do Conselho de Política Alimentar de Quito permitiu a coordenação de diretivas especiais e de comunicação, incluindo o pedido de maior atenção para famílias vulneráveis ​​e o setor informal (mercados). No entanto, também foi constatado que são necessárias respostas mais rápidas e bem coordenadas.


Os bancos de alimentos e as organizações comunitárias em Melbourne, Austrália, relatam um aumento significativo na demanda por alimentos devido à crise econômica e ao aumento do desemprego. O governo do estado de Victoria está fornecendo cestas de comida de emergência para as pessoas vulneráveis, mas essa resposta do governo tem sido irregular. Alguns mercados de agricultores em Melbourne foram fechados pelos governos locais, reduzindo as oportunidades de se comprar alimentos locais frescos e deixando os agricultores sem seus pontos de venda habituais. Também houve aumentos significativos nos preços para algumas frutas e hortaliças (também por causa da recente seca e dos incêndios florestais).


Uma aliança de empresas sociais, o coletivo Moving Feast, fornece ajuda alimentar para famílias de baixa renda, entregando cestas de produtos, refeições de emergência e kits de horticultura. Tem havido um grande aumento no número de agricultores e mercados de produtores que estão atuando online na Open Food Network para superar as restrições impostas pelo distanciamento físico.

Uma abordagem SAUR poderia ajudar Melbourne a fortalecer a resiliência de seu sistema alimentar frente a esses choques múltiplos. A produção local e a distribuição de alimentos na cidade e sua região podem aumentar o suprimento de alimentos frescos e reduzir a dependência de fontes de alimentos mais distantes.

Foto de Instituto Mazingira, de Nairóbi: Agricultores urbanos jovens de Nairóbi alimentando suas cabras leiteiras.